terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O enterro


No ano de 1988, um enterro alvoroçou uma pacata cidade do interior do Piauí. Uma semana antes do sucedido, ouvi meus pais comentando do enfermeiro da cidade estar hospitalizado na capital. Bem, eu já contava quatorze anos; fumava um cigarro de palha e sabia de muitas histórias de homens, coisa comum para os meninos de minha época. Mas algumas coisas marcaram-me profundamente a adolescência. Em primeiro lugar, o dito enfermeiro tinha duas casas, duas esposas e, consequentemente, duas famílias. E algo curioso para um menino saber: As duas mulheres do Seu Batista moravam perto; questão de dois quarteirões de distância entre as casas.
Até aqui, tudo bem. Creio. Os filhos se entendiam; jogavam bola juntos e tinham amigos em comum. Apenas o filho mais velho da esposa “oficial” não morria de amores pela segunda mulher do pai, muito embora respeitasse o chefe da família (digo, das famílias). Mas os filhos estavam tendo problemas, sobretudo para o caso de o pai vir a falecer (o que parecia provável), de onde seria realizado o velório.
Foi na hora do recreio, dais depois de ouvir da saúde do Senhor Batista, que o diretor entrou nas salas de aula e sugeriu aos professores que fossem conosco ao velório. Pus-me de pé tão de repente, tão pálido que cheguei a assustar alguns colegas. E eu que era tão sem alarde de emoções. Mas tem vezes que assumimos para nós uma dor que não é nossa.
Dado que minha casa ligava-se à do finado por uma cerca de arame, passei a noite no velório. E seria impossível não presenciar dos falatórios da vida do homem. Não era santo (a cidade toda sabia), mas tinha qualidades que lhe cobriam os defeitos. É verdade que a esposa do Seu Batista cuidara dos resguardos da amante dele? As filhas de Dona Inocência ensinam os deveres escolares dos filhos da outra? Dia de Finados, quando ele ia acender velas para os familiares falecidos, passava em praça pública de braços dados com as duas mulheres?
Eu não dizia nada. Caminhava embaixo de uma mangueira atopetada de amigos (curiosos) na casa da esposa (Inocência... um nome tão angelical), com as mãos nos bolsos de minha calça de farda cáqui. Nervosamente, eu pensava na filha mais velha e no sofrimento que com certeza estava passando. Gislene tinha os olhos mais lindos que eu já pude contemplar! Que voltas dão os pensamentos num velório! Volvi a atenção a meu redor.
Num lugar pequeno, todos sabem de tudo e põem o dedo na vida alheia com um conselho de compadre, seja qual for o assunto. Mas não era apenas dos fatos vividos que estavam comentando. Era do enterro; pois o filho mais velho não permitira que a outra (Dona Francisca) viesse chorar o morto ao lado de Dona Inocência. Agora, cada cidadão se permitia ao luxo de dar palpites. Falavam que o prefeito mandara saber a hora do enterro e se o caixão seguiria o caminho normal do cemitério. Eu queria conhecer o segredo de alguns homens em adivinhar coisas das mais impossíveis a meu ver. Queria ter o dom da sabedoria ou a sensatez dos mais velhos. Não seria para ficar de conversa fiada embaixo de mangueiras, tomando cafezinho e rindo de causos dos mortos. Eu tenho a fina intenção de conhecer a mim mesmo e resolver um simples caso de timidez.
Tornou-se inevitável o cortejo do caixão à última morada. Um dos irmãos do finado chamou os filhos da esposa e explicou que os filhos de dona Francisca e esta também (o morto deixara o pedido), tinham o direto de se despedir do patriarca da família. E ali estava a multidão esperando, tentando entender o que se passava na cabeça do primogênito. Em vez de falar demasiado, chorar, argumentar de seus desejos, ele parou de súbito, baixou a cabeça e foi na direção do caixão. Notava-se uma luta interior. Um instante que durou minutos e eu, de boca seca, mão destra no queijo, ouvi-o balbuciar que o tio fizesse o que achasse mais conveniente. E lá ficou com o olhar preso em algum ponto no rosto petrificado e frio do pai.
Não foi uma decisão fácil, aquela. Aquilo foi o bastante para mim. Fui saindo da sala como quem procura resolver um assunto e não acerta, com os ombros curvos e um olhar mais baixo ainda. Penso que nunca senti mais o lado frágil de um homem que no semblante do filho mais velho. Eu queria encontrar uma janela e ficar olhando o nada. Olhando sem enxergar o medo, a dor da perda. A raiva de não poder gritar que estava assustado com o amanhã, ardia-me dentro do peito. Então, calei de completo meus pensamentos a tempo de ver a procissão fúnebre saindo.
Os homens caminhavam a passos curtos, enquanto as mulheres teciam rezas. As portas das casas saudavam o morto, num fino pesar. Houve um momento em que meus olhos cruzaram com os de Gislene. Algumas mulheres são belas desde meninas. Aqueles olhos disseram de tudo. Vi quando o caixão entrou na casa de Dona Francisca. Cinco crianças chorando... E tanta gente falando, falando. E Gislene quieta. Não dizia nada. O sol claro no portão da casa batia nos cabelos loiros dela e ficou ali caminhando devagar, como se quisesse aquecê-la num abraço tão pleno de conforto.
E os trinta minutos seguintes ensinaram-me que o amanhã pode estar distante, mas chegará certamente. Foi assim que descobri, ainda na adolescência, que um dia vamos embora; que deixamos muitas saudades... Que nossos passos são para a eternidade. E que a vida, mesmo em situações adversas, muito ensina: Um homem pode encher sua vida de uma única mulher!
E a minha vida fica mais cheia de tudo quando o cheiro de Gislene sai de sua janela!...  Os meus olhos de tanto a olharem, impregnam-se do nome dela. E fico aqui... olhando-a... timidamente!...

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